"Uma vez um menino disse que usava as melhores roupas e marcas para
ir ao shopping para ser visto como gente, ou seja, a roupa tentava resolver uma
profunda tensão da visibilidade de sua existência. Mas, no outro lado, os donos
da loja se assustavam e cuidavam para ver se eles não roubavam nada". Quem
nos narra é a professora Rosana Pinheiro Machado, cientista social e
antropóloga, professora de Antropologia do Desenvolvimento da Universidade de
Oxford, em artigo publicado por Sul21,
em 16/01/2014.
Ainda segundo a antropóloga, "[...] a classe média disciplinada vê
os jovens vestindo as marcas do mercado hegemônico para qual ela serve, vê os
sujeitos vestindo as mesmas marcas que ela veste (ou ainda mais caras), mas não
se reconhece nos jovens cujos corpos parecem precisar ser domados. A classe
média não se reconhece no outro e sente um distúrbio profundo e perturbador por
isso".
Republico o artigo, que me pareceu bastante
esclarecedor, embora possa não agradar os mais ferrenhamente defensores do
"mercado", como forma de solução para todos os conflitos do ser
humano, que como se pode concluir, a partir da leitura abaixo, que não consegue
resolver nem os conflitos ligados ao consumo, muito menos, os existenciais!
Vamos ao artigo:
Em 2009, eu e minha colega e amiga Lucia Scalco, começamos a estudar o fenômeno dos bondes de marca.
Como? A gente reunia a rapaziada, descíamos o morro e íamos juntos dar um
rolezinho pelo shopping – o lugar preferido desses jovens da periferia de Porto Alegre.
Eles nos mostravam as
marcas e lojas preferidas. Eles contavam como faziam de tudo para adquirir
esses bens. Havia uma agência (no sentido de prazer de Appadurai 1) impressionante
nesse ato de descer até o shopping.
Eles não queriam assustar, porque nem imaginavam que a discriminação
fosse tão grande que eles pudessem assustar. Muito pelo contrário: eles faziam
um ritual de se vestir, de usar as melhores marcas e estar digno para transitar
pelo shopping.
Uma vez um menino disse que usava as melhores roupas e marcas para ir ao
shopping para ser visto como gente. Ou seja, a roupa tentava resolver uma
profunda tensão da visibilidade de sua existência. Mas noutro canto, os donos
da loja se assustavam e cuidavam para ver se eles não roubavam nada.
Um funcionário disse à Lucia a
mais honesta frase de todas (uma honestidade que corta a alma): “[...] não
adianta eles se vestirem com marca e pagar com dinheiro, pobre só usa dinheiro
vivo. Eles chegam aqui e a gente na hora vê que é pobre”.
Eles, no entanto, acreditavam que eram os mais adorados e empoderados
clientes das lojas.
Um funcionário da Nike uma vez declarou para a pesquisa: “[...] nós nos
envergonhamos desse fenômeno de apropriação da nossa marca por esses
marginais”. Mas, eles nos diziam: “[...] as marcas deveriam nos pagar para
fazer propaganda, porque nós as amamos, sem marca, você é um lixo”.
Quando eu mostrei o funk dos bens materiais em aula, uma aluna de camadas altas
comentou: “[...] quando a gente vê a figura toda montada marca estampada, já vê
que é negão favelado”.
Infelizmente, não me surpreendeu o fato de toda a classe ter caído na
risada. Esse mesmo tipo de pessoa é aquela que ainda diz que é um absurdo
comprar televisão, “[...] pobre deveria alimentar a prole” e ponto final.
No programa Papai Noel dos Correios, que eu e Lúcia analisamos, uma
menina desafiava o seu destino: "[...] kiido Papai Noel: eu me
comportei, eu passei de ano, eu cuido da minha vó, meu pai sumiu de casa. Eu só
quero uma calça da Adidas!”
Mas vocês podem concluir que cartas como essas são relegadas por meio de
uma moralidade escrota: todos os pedidos de meninas e meninos de roupas de
marca eram vistos como um desaforo. Que absurdo! Afinal, pobre deve pedir
material escolar e bicicleta!
Eu tenho ficado quieta nesse caso do rolezinho porque este talvez seja o
assunto que mais seja caro à minha sensibilidade acadêmica e política. Esse
tema é justamente o que me faz me afastar de certa antropologia vulgar com suas
interpretações do tipo “[...] que lindo essas pessoas se apropriam das marcas e
dão novos significados e agência e blá, blá, blá, conversa prá boi dormir”.
Mas também é este tema que me aproxima ao que a antropologia tem de
melhor: ouvir as pessoas. Não há uma grande diferença do rolezinho organizado e
ritualizado das idas aos shoppings mais ordinárias (ainda que a ida ao shopping
pelas classes populares nunca tenha sido um ato ordinário), eu vejo uma
continuidade que culmina num fenômeno político que nos revela o óbvio: a
segregação de classes brasileiras que grita e sangra.
O ato de ir ao shopping é um ato político: porque esses jovens estão se
apropriando de coisas e espaços que a sociedade lhes nega dia a dia. Quando eu
vejo aquele medo das camadas medias, lembro-me daquelas pessoas que se
referiram “aos negões favelados”. E há certa ironia nisso. Há contestação
política nesse evento, mas também há camadas muito mais profundas por trás
disso.
Eu estou acompanhando os rolezinhos e sinto certo prazer em ver aquela
apropriação. Mas entre apropriação e resistência há uma abismo significativo.
Adorar os símbolos de poder – no caso, as marcas – dificilmente remete à ideia
de resistência que tanta gente procura encontrar nesse ato.
O tema é complexo não apenas porque desvela a segregação de classe
brasileira, mas porque descortina a tensão da desigualdade entre países
desenvolvidos e em desenvolvimento, entre o Norte e o Sul. E enquanto esses
símbolos globais forem venerados entre os mais fracos, a liberdade nunca será
plena e a pior das dependências será eterna: a ideológica.
Por isso, para entender a relação que as periferias globais têm com as
marcas e os shoppings, é preciso voltar para os estudos colonialistas e
pós-colonialistas. A apropriação de espaços símbolos hegemônicos, desde Newell2, passando por Bhabha3 e Ferguson4, nos mostra uma
permanente tensão na apropriação que tenta resolver a brutal violência que esta
por trás desse ato.
O meu lado otimista, não nega o que esses jovens nos disseram: do prazer
que sentem em se vestir bem e circular pelo shopping para SEREM VISTOS.
Meu lado pessimista, tende a concordar com Ferguson de que há menos subversão política e mais um apelo
desesperador para pertencer à ordem global. É preciso entender o rolezinho
dentro de uma perceptiva de séculos de violência praticada na tentativa de
produzir corpos padronizados, desejáveis e disciplinados.
O pobre no shopping repete a mimesis5 de Bhabha. A classe média disciplinada vê
os jovens vestindo as marcas do mercado hegemônico para qual ela serve. A
classe média vê os sujeitos vestindo as mesmas marcas que ela veste (ou ainda
mais caras), mas não se reconhece nos jovens cujos corpos parecem precisar ser
domados. A classe média não se reconhece no outro e sente um distúrbio profundo
e perturbador por isso.
Não adianta não gostar de ver a periferia no shopping. Se há poesia da
política do rolezinho é que ela é um ato, fruto da violência estrutural (aquela
que é fruto da negação dos direitos humanos e fundamentais): ela bate e volta.
Toda essa violência cotidiana produzida em deboches e recusa do outro e, claro
também por meio de cacetes da polícia, voltará a assombrar quando menos se
esperar.
Tenho que concordar com muito do que foi descrito pela antropóloga, principalmente
no tocante ao apartheid econômico e social instalado no Brasil, que, em função
da péssima distribuição da renda nacional, chega a ser afrontosa a disparidade
entre os maiores e os menores salários recebidos pelos trabalhadores. E as três
esferas governamentais, mais propriamente o Governo Federal, que deveria ser o
grande gestor da distribuição da renda, na prática, funcionam como o Robin Hood
ás avessas, pois tira dos pobres para dar aos ricos...
Para facilitar o entendimento, vejam as notas de rodapé, como tive que
pesquisar, tentei facilitar o entendimento dos leitores.
1 Arjun
Appadurai: Antropólogo indiano conhecido pelos seus trabalhos sobre modernidade e globalização.
2 Allen Newell:
Pesquisador da ciência
da computação e psicólogo cognitivo norteamericano, do Departamento
de Psicologia da Universidade
Carnegie Mellon.
3 Homi K. Bhabha:Professor de inglês e de literatura americana e linguagem e
diretor do Centro de Humanidades da Universidade de Harvard.
4 Niall Campbell Douglas Ferguson: Historiador britânico, professor de
História na Universidade de Harvard e pesquisador sênior do Jesus
College e da Universidade de Oxford, e membro sênior da Hoover Institution, na
Universidade de Stanford.
5 Mimesis:
Tanto Platão quanto Aristóteles viam, na mimesis, a representação da natureza. Contudo, para Platão toda a criação era uma imitação, até
mesmo a criação do mundo era uma imitação da natureza verdadeira (o mundo das
idéias).
6 Etnografia: É por excelência o método utilizado pela antropologia na coleta de dados. Baseia-se no contato inter-subjetivo
entre o antropólogo e o seu objeto, seja ele qualquer grupo social sob o qual o
recorte analítico seja feito.
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