sábado, 25 de janeiro de 2014

Etnografia do Rolezinho

"Uma vez um menino disse que usava as melhores roupas e marcas para ir ao shopping para ser visto como gente, ou seja, a roupa tentava resolver uma profunda tensão da visibilidade de sua existência. Mas, no outro lado, os donos da loja se assustavam e cuidavam para ver se eles não roubavam nada". Quem nos narra é a professora Rosana Pinheiro Machado, cientista social e antropóloga, professora de Antropologia do Desenvolvimento da Universidade de Oxford, em artigo publicado por Sul21, em 16/01/2014.

Ainda segundo a antropóloga, "[...] a classe média disciplinada vê os jovens vestindo as marcas do mercado hegemônico para qual ela serve, vê os sujeitos vestindo as mesmas marcas que ela veste (ou ainda mais caras), mas não se reconhece nos jovens cujos corpos parecem precisar ser domados. A classe média não se reconhece no outro e sente um distúrbio profundo e perturbador por isso".

Republico o artigo, que me pareceu bastante esclarecedor, embora possa não agradar os mais ferrenhamente defensores do "mercado", como forma de solução para todos os conflitos do ser humano, que como se pode concluir, a partir da leitura abaixo, que não consegue resolver nem os conflitos ligados ao consumo, muito menos, os existenciais!

Vamos ao artigo:

Em 2009, eu e minha colega e amiga Lucia Scalco, começamos a estudar o fenômeno dos bondes de marca. Como? A gente reunia a rapaziada, descíamos o morro e íamos juntos dar um rolezinho pelo shopping – o lugar preferido desses jovens da periferia de Porto Alegre. 

Eles nos mostravam as marcas e lojas preferidas. Eles contavam como faziam de tudo para adquirir esses bens. Havia uma agência (no sentido de prazer de Appadurai 1) impressionante nesse ato de descer até o shopping.

Eles não queriam assustar, porque nem imaginavam que a discriminação fosse tão grande que eles pudessem assustar. Muito pelo contrário: eles faziam um ritual de se vestir, de usar as melhores marcas e estar digno para transitar pelo shopping.

Uma vez um menino disse que usava as melhores roupas e marcas para ir ao shopping para ser visto como gente. Ou seja, a roupa tentava resolver uma profunda tensão da visibilidade de sua existência. Mas noutro canto, os donos da loja se assustavam e cuidavam para ver se eles não roubavam nada.

Um funcionário disse à Lucia a mais honesta frase de todas (uma honestidade que corta a alma): “[...] não adianta eles se vestirem com marca e pagar com dinheiro, pobre só usa dinheiro vivo. Eles chegam aqui e a gente na hora vê que é pobre”.

Eles, no entanto, acreditavam que eram os mais adorados e empoderados clientes das lojas. 

Um funcionário da Nike uma vez declarou para a pesquisa: “[...] nós nos envergonhamos desse fenômeno de apropriação da nossa marca por esses marginais”. Mas, eles nos diziam: “[...] as marcas deveriam nos pagar para fazer propaganda, porque nós as amamos, sem marca, você é um lixo”.

Quando eu mostrei o funk dos bens materiais em aula, uma aluna de camadas altas comentou: “[...] quando a gente vê a figura toda montada marca estampada, já vê que é negão favelado”.

Infelizmente, não me surpreendeu o fato de toda a classe ter caído na risada. Esse mesmo tipo de pessoa é aquela que ainda diz que é um absurdo comprar televisão, “[...] pobre deveria alimentar a prole” e ponto final.

No programa Papai Noel dos Correios, que eu e Lúcia analisamos, uma menina  desafiava o seu destino: "[...] kiido Papai Noel: eu me comportei, eu passei de ano, eu cuido da minha vó, meu pai sumiu de casa. Eu só quero uma calça da Adidas!”

Mas vocês podem concluir que cartas como essas são relegadas por meio de uma moralidade escrota: todos os pedidos de meninas e meninos de roupas de marca eram vistos como um desaforo. Que absurdo! Afinal, pobre deve pedir material escolar e bicicleta!

Eu tenho ficado quieta nesse caso do rolezinho porque este talvez seja o assunto que mais seja caro à minha sensibilidade acadêmica e política. Esse tema é justamente o que me faz me afastar de certa antropologia vulgar com suas interpretações do tipo “[...] que lindo essas pessoas se apropriam das marcas e dão novos significados e agência e blá, blá, blá, conversa prá boi dormir”.

Mas também é este tema que me aproxima ao que a antropologia tem de melhor: ouvir as pessoas. Não há uma grande diferença do rolezinho organizado e ritualizado das idas aos shoppings mais ordinárias (ainda que a ida ao shopping pelas classes populares nunca tenha sido um ato ordinário), eu vejo uma continuidade que culmina num fenômeno político que nos revela o óbvio: a segregação de classes brasileiras  que grita e sangra.

O ato de ir ao shopping é um ato político: porque esses jovens estão se apropriando de coisas e espaços que a sociedade lhes nega dia a dia. Quando eu vejo aquele medo das camadas medias, lembro-me daquelas pessoas que se referiram “aos negões favelados”. E há certa ironia nisso. Há contestação política nesse evento, mas também há camadas muito mais profundas por trás disso.

Eu estou acompanhando os rolezinhos e sinto certo prazer em ver aquela apropriação. Mas entre apropriação e resistência há uma abismo significativo. Adorar os símbolos de poder – no caso, as marcas – dificilmente remete à ideia de resistência que tanta gente procura encontrar nesse ato.

O tema é complexo não apenas porque desvela a segregação de classe brasileira, mas porque descortina a tensão da desigualdade entre países desenvolvidos e em desenvolvimento, entre o Norte e o Sul. E enquanto esses símbolos globais forem venerados entre os mais fracos, a liberdade nunca será plena e a pior das dependências será eterna: a ideológica.

Por isso, para entender a relação que as periferias globais têm com as marcas e os shoppings, é preciso voltar para os estudos colonialistas e pós-colonialistas. A apropriação de espaços símbolos hegemônicos, desde Newell2, passando por Bhabha3 e Ferguson4, nos mostra uma permanente tensão na apropriação que tenta resolver a brutal violência que esta por trás desse ato.

O meu lado otimista, não nega o que esses jovens nos disseram: do prazer que sentem em se vestir bem e circular pelo shopping para SEREM VISTOS. Meu lado pessimista, tende a concordar com Ferguson de que há menos subversão política e mais um apelo desesperador para pertencer à ordem global. É preciso entender o rolezinho dentro de uma perceptiva de séculos de violência praticada na tentativa de produzir corpos padronizados, desejáveis e disciplinados.

O pobre no shopping repete a mimesis5 de Bhabha. A classe média disciplinada vê os jovens vestindo as marcas do mercado hegemônico para qual ela serve. A classe média vê os sujeitos vestindo as mesmas marcas que ela veste (ou ainda mais caras), mas não se reconhece nos jovens cujos corpos parecem precisar ser domados. A classe média não se reconhece no outro e sente um distúrbio profundo e perturbador por isso.

Não adianta não gostar de ver a periferia no shopping. Se há poesia da política do rolezinho é que ela é um ato, fruto da violência estrutural (aquela que é fruto da negação dos direitos humanos e fundamentais): ela bate e volta. Toda essa violência cotidiana produzida em deboches e recusa do outro e, claro também por meio de cacetes da polícia, voltará a assombrar quando menos se esperar.

Tenho que concordar com muito do que foi descrito pela antropóloga, principalmente no tocante ao apartheid econômico e social instalado no Brasil, que, em função da péssima distribuição da renda nacional, chega a ser afrontosa a disparidade entre os maiores e os menores salários recebidos pelos trabalhadores. E as três esferas governamentais, mais propriamente o Governo Federal, que deveria ser o grande gestor da distribuição da renda, na prática, funcionam como o Robin Hood ás avessas, pois tira dos pobres para dar aos ricos...

Para facilitar o entendimento, vejam as notas de rodapé, como tive que pesquisar, tentei facilitar o entendimento dos leitores.

1 Arjun Appadurai: Antropólogo indiano conhecido pelos seus trabalhos sobre modernidade e globalização.
2 Allen Newell: Pesquisador da ciência da computação e psicólogo cognitivo norteamericano, do Departamento de Psicologia da Universidade Carnegie Mellon.
3 Homi K. Bhabha:Professor de inglês e de literatura americana e linguagem e diretor do Centro de Humanidades da Universidade de Harvard.
4 Niall Campbell Douglas Ferguson: Historiador britânico, professor de História na Universidade de Harvard e pesquisador sênior do Jesus College e da Universidade de Oxford, e membro sênior da Hoover Institution, na Universidade de Stanford.
5  Mimesis: Tanto Platão quanto Aristóteles viam, na mimesis, a representação da natureza. Contudo, para Platão toda a criação era uma imitação, até mesmo a criação do mundo era uma imitação da natureza verdadeira (o mundo das idéias).

6 Etnografia: É por excelência o método utilizado pela antropologia na coleta de dados. Baseia-se no contato inter-subjetivo entre o antropólogo e o seu objeto, seja ele qualquer grupo social sob o qual o recorte analítico seja feito.

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