Ponto de Vista


O Pai Etiene Sales do RJ indiscutivelmente escreve muito bem, muitos devem conhecê-lo das listas de discussão da internet, das quais participa ativamente, sempre com muita propriedade. Tivemos a satisfação de trazê-lo no Seminário realizado pela FUEP no primeiro semestre de 2011, quando ele falou sobre a questão da cidadania umbandista.

No final do ano passado ele nos brindou com um texto que chamou de "Uma pequena contribuição para fechar 2011 e abrir um 2012 com novas perspectivas para a melhoria de nossa linda Umbanda".

Acredito que sinteticamente ele conseguiu descrever os mecanismos que levam as pessoas a tentar a mobilização dos guias espirituais e entidades seja para os problemas materiais ou espirituais, esperando simplesmente uma troca de favores, esquecendo que as nossas conquistas dependem do nosso esforço individual, do livre-arbítrio e também do nosso merecimento perante a divindade.

Boa leitura, quem sabe a gente não entende um pouco melhor a Umbanda e os nosso Guias.

Feliz Ano novo a todos!

Vamos ao texto:

Incoerências no entendimento e percepção dos problemas materiais e espirituais na Umbanda.

O que distingue o povo brasileiros de outros povos é a sua diversidade.

Não só múltiplo em culturas (não existe uma cultura, um estilo de música, uma comida, um folclore, algo que se diga que seja único e representativo do ser brasileiro), mas em um todo plural que é a cara do brasileiro.

Alguns dizem que o carnaval é uma forma representante da cultura do Brasil, mas nem isso. É algo que veio da Europa e que encontra diversos similares. Até no próprio Brasil, existe distinção de formas e estilos no próprio período de carnaval, variante de região para região: no Sudeste é uma forma e um estilo de música e dança, no Norte é outro, no Nordeste outro, no Sul outro... Não há uma única forma representante nem para o carnaval, mas se percebe a alegria, o período de descontração inerente a cada região e até a cada cidade que comemora esse carnaval.

O interessante é que formas e percepções variam em tudo e para tudo em nossas vidas, assim como o seu entendimento, principalmente na vida religiosa ou no trabalho religioso. Seja dentro de cada templo, seja dentro de conjuntos religiosos, seja na própria Umbanda.

Entendemos que existem as variações, as formas, ritos, doutrinas, fundamentos inerentes a cada seguimento umbandista. Entretanto, mesmo dentro dessas variações, dentro dessa diversidade e pluralidade, existem fatos constantes que provocam um pensar amargo não só entre os médiuns, mas também entre os sacerdotes que são as incoerências, basicamente vindas dos assistenciados, mas também encontradas em alguns médiuns menos dedicados, rebeldes ou descompromissados com a religião.

Essas incoerências provocam verdadeiras revoluções na cabeça dos médiuns mais dedicados, mais responsáveis e compromissados que vêem seus guias e a si mesmos sendo usados no ardil da caridade, em que os consulentes pedem mundos e fundos, das coisas mais banais as mais absurdas e sórdidas.

Só que nada ocorre por acaso. Tudo tem uma razão de ser e um motivo de ser. E essa procura dos assistenciados, por exemplo: por homens, mulheres, amor, emprego, rivalidades no trabalho, adiantar processos diversos na justiça, afastar o filho(a) de um amor inconveniente (aos olhos dos pais), saber sexo de bebê, se vai engravidar, se o marido (ou mulher) está traindo, pombogira de frente atrapalhando a vida, demandas que não existem (só na cabeça da própria pessoa, principalmente vindas de sogra, vizinha, parente ou conhecido próximo), que a vida não anda porque tem alguma coisa espiritual (foi em algum local e disseram)... e tantas outras que nada têm referência a religião, mas sim a um estado de conflitos.

As pessoas que procuram um terreiro de Umbanda, em sua grande maioria, não têm a mínima idéia do que é problema material e problema espiritual. 

Colocam tudo nos termos do pedir ao espiritual, seja lá o que for, seja para os Guias, seja para os Orixás. Muitas vezes criando um sistema de trocas pernicioso e viciante, em que parte do erro recai sobre o assistenciado; e, a outra parte, nas casas que assim procedem dando margem a esses pedidos, construindo uma falsa imagem da Umbanda como um faz tudo (imediatismo) e sempre a base de alguma troca: grande parte dos trabalhos são envoltos em vantagens financeiras ou barganhas (para a casa, para o médium e/ou para o sacerdote/dirigente e, as vezes, até para um Guia).

Nem todos os trabalhos são baseados em vantagens financeiras ou barganhas. Existem muitos que fazem a troca e não cobram nada financeiramente, mas criam dívidas morais ou de dependência que o assistente vai acumulando e se tornando, cada vez mais, como um aleijado que vê as entidades da casa ou o próprio sacerdote/dirigente como muletas, e nada faz na vida, não toma uma iniciativa que seja, a não ser sob as palavras daquele local. Ou seja, cria-se o vício para que haja dependência e controle sobre o assistido (que, muitas vezes, também é repetida com os próprios médiuns da casa).

Tudo isso vai ocorrendo até que as falhas comecem a acontecer: as orientações daquelas entidades do local falham, os trabalhos orientados não dão certo ou não têm efeito, aquilo que era o ideal de só ir ali pedir (com ou sem um viés financeiro) não dá mais certo.

Normalmente quando isso acontece o assistenciado ou se decepciona com a Umbanda e acaba procurando uma outra religião para ser pedinte (e hoje em dia é o que mais se vê por ai), ou procura um outro terreiro que possa suprir as suas necessidades e o seu vício de pedir tudo e qualquer coisa.

Quando essas pessoas vão a um local que não tem uma visão de materialidade, mas de espiritualidade, onde os médiuns, Guias e Sacerdote/Dirigente estão voltados ao espiritual, sendo o material colocado em seu devido local, oriundo da própria busca da pessoas, em que esse espiritual pode auxiliar, mas não resolver, dar aquilo que a pessoa vai ali pedir, existe um grande impacto.

Algumas casas se dão ao trabalho que colocar nos quadros de aviso ou, antes das giras, o sacerdote ou um médium ali o representando, diz as pessoas da assistência sobre a postura da casa e sua ordem de funcionamento, e que ali não se faz trabalhos para isso ou aquilo, não trás ninguém ou amarra alguém. Só que, mesmo com os avisos (escritos e/ou verbais), esses assistentes que já adquiriram o vício do pedir e/ou pagar para ter, vão as entidades e ali despejam suas necessidades materiais, psicológicas e sociais diversas.

Muitos médiuns ou pela consciência de suas incorporações, ou pelo recado deixado aos cambonos pelas entidades, ficam muito decepcionados com essas situações. Isso não só pelos pedidos, mas também pela reação dos assistenciados quando a entidade se nega a realizar o pedido, seja através de um simples não faço, ou aqui não se faz isso, ou de uma bronca pelo que lhe foi solicitado dizendo que ali não é local. Muitos assistenciados saem maldizendo as entidades e a casa: que é fraca, que é um absurdo não prestar a caridade (que eles querem), que em todos os locais que foram fizeram trabalhos e outras coisas das mais absurdas possíveis, simplesmente porque ali não encontraram terreno fértil as suas necessidades.

O interessante é que, mesmo não sendo tarefa principal das entidades resolver os problemas materiais, psicológicos ou sociais, elas tentam orientar, mostrar caminhos, mostrar outras perspectivas, formas e mudanças de postura, comportamento, maneira de pensar e até de buscar uma religiosidade necessária a essas pessoas. E, mesmo assim, mesmo tendo uma orientação e uma ajuda (que não foi a que queriam, mas a que necessitavam), muitos assistenciados não ficam satisfeitos e, alguns, até decepcionados e raivosos.

Só que a balança tende para os dois lados.

Como existem os que não ficam satisfeitos, chateados por não terem conseguido ali o que 

queriam; outros, por sua vez, ficam admirados em encontrar, muitas vezes, soluções simples e derradeiras para suas vidas, para seus problemas, mesmo sabendo que não se trata de algo espiritual, entendem que a entidade se colocou a auxiliá-los em outras questões, sapientes que os passos, a mudança, as ações e a busca ou modificações de suas vidas, são unicamente responsabilidades deles mesmos.

São conscientizados que um descarrego, um passe, um banho, ou até mesmo um trabalho (quando é necessário e prioritário) não vai resolver seus problemas, mas vai lhes permitir uma melhora, uma harmonia, uma melhor visão sobre as coisas e sobre suas vidas... que não há milagres gratuitos pelo simples pedir, mas que, se os milagres acontecem, é por algum merecimento o indivíduo conseguiu, e isso não ocorre porque o Guia assim o quis, nem porque o Orixá assim o quis, mas sim porque outros fatores ali se mostraram relevantes para que aquela graça fosse alcançada, e, aí sim, a interferência dos Guias e Orixás foi permitida na ajuda aquela pessoa.

Ainda é muito incipiente as orientações dentro das casas aos assistentes e até aos médiuns, no separar o que são problemas materiais e o que são problemas espirituais. Por isso vale lembrar que um problema espiritual pode acarretar problemas materiais, mas nem todos os problemas materiais são de origem espiritual. A grande maioria passa pelo psicológico, econômico, relacionamento, comportamento e caráter social (incluindo familiar e trabalho)... 

Muito longe de aspectos espirituais.

Existe a necessidade de fazer com que as pessoas, assistenciados e até médiuns, entendam que existe uma diferença entre esses problemas e na forma pela qual as entidades irão proceder para ajudá-los. Uma informação muito importante que iria ajudar muito aos desavisados e ignorantes, que são convencidos em acreditar que tudo é espiritual e tudo pode ser resolvido por meio de trocas e barganhas, financeiras ou não.

Se essa informação fosse melhor divulgada muitos saberiam que esses atos não são e nem cabem a Umbanda, mesmo com toda a sua diversidade e pluralidade religiosa, pois não é propósito da religião de Umbanda o lucro financeiro ou a dependência/ignorância religiosa ou a resolução de qualquer problema a base de trabalhos para tudo e qualquer coisa (quando existe a necessidade de se fazer um trabalho numa casa de Umbanda, existe um motivo e explicação para o mesmo).

O grande propósito da Umbanda, imerso em todas as suas tradições/escolas/ramos, variando em formas e não em essência, é contribuir e ajudar no crescimento espiritual, moral e até material das pessoas, numa elevação de consciência contínua (também chamada de evolução), e uma humanização do ser humano envolto a um divino (Deus, Orixás e Guias), em uma fé consciente e coerente, que transporte para o meio social o respeito e a dignidade que uns devem ter para com os outros, pois somos todos iguais perante a Deus.

Axé!

Pai Etiene Sales

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