Concordata: a educação pública na mira do Vaticano
Luiz Antônio Cunha*
No maior sigilo, a Santa Sé arrancou do governo brasileiro uma concordata.
Vamos esclarecer os termos. A Santa Sé é a direção mundial da Igreja Católica, mesclada ao Estado do Vaticano, com quem o Brasil tem relações diplomáticas desde sua criação, em 1929, por força da mãe das concordatas – o Tratado de Latrão, firmado por Pio XI e Mussolini. Disse arrancar, porque mesmo depois das declarações do Presidente Lula, por ocasião da visita do Papa Bento XVI a São Paulo, em maio de 2007, de que o Brasil é (era?) um Estado laico, a insistência vaticana venceu: algo foi suprimido, algo foi mantido, mas, em novembro de 2007, o texto proposto pelo Vaticano foi assinado em Roma.
Tramita agora no Congresso Nacional, onde pressões tão sigilosas quanto eficazes para certos setores parlamentares pretendem arrancar (mais uma vez esse verbo!) a homologação de documento inédito desde a proclamação da República, que separou Estado e Igreja. Comparado a essa concordata, o acordo sobre a capelania militar, de 1989, fica reduzido à expressão mais simples.
A antiga amizade de Lula com o Cardeal Cláudio Hummes, pode bem ter sido a ferramenta para arrancar a concordata. Nos anos 70, quando Lula presidia o Sindicato de Metalúrgicos, Hummes era bispo de São Bernardo. Nessa ocasião, o prelado prestou importante apoio aos movimentos grevistas dos trabalhadores e protegeu lideranças perseguidas pela polícia política. Já cardeal, ele virou ministro do Papa: foi nomeado por Bento XVI para o cargo de Prefeito da Congregação para o Clero, posto estratégico na política de “realinhamento doutrinário” da Igreja Católica. Como negar-lhe um pedido? Por razões do coração, Lula deve ter acreditado no que os diplomatas do Itamaraty e os cardeais do Vaticano declararam em uníssono à crédula (ou cúmplice?) imprensa: o acordo apenas consolida a legislação brasileira concernente à Igreja Católica. Que ficassem tranqüilos os crentes das demais religiões, assim como os não crentes, porque nada mudaria. Pois muda e muito.
O que a concordata vaticana pretende é misturar uma vez mais a Igreja, não qualquer Igreja, mas a Igreja Católica, ao Estado. Como não dá para fazê-la voltar ao útero estatal onde foi aninhada durante séculos, o acordo, tratado ou simplesmente concordata pretende garantir-lhe privilégios inéditos.
Não é imaginável que a Igreja Católica precise ter regulamentada sua atuação no Brasil, a ponto de necessitar de uma concordata. Se fosse na China, vá lá. Nesse país, o governo dificulta a atuação da hierarquia eclesiástica e até mesmo os cultos, de modo que a Igreja Católica sobrevive numa estreita faixa demarcada pela clandestinidade, de um lado, e pela oficialidade forçada, de outro. Uma concordata com a RPC teria sentido, pois estabeleceria os marcos jurídicos para a atuação religiosa, explicitando os parâmetros do Estado chinês e da Igreja Católica. Mas, no Brasil, onde ela desfruta de privilégios históricos, que interesses estariam ameaçados? Por quem? Nenhum. Ninguém. O que ameaça a Igreja Católica é o rápido aumento do número de evangélicos, de agnósticos e de ateus, correlativo à redução do número de católicos. Tentar reverter esse quadro é direito da alta direção da Igreja Católica, mas não instrumentalizando o Estado. Isso é artifício intolerável numa República democrática que a tão duras penas construímos no Brasil.
Os 20 artigos da concordata tratam de diferentes assuntos, dentre os quais os seguintes: organização e personalidade jurídica das instituições eclesiásticas; imunidades, isenções e benefícios fiscais; patrimônio cultural; casamento; regime trabalhista de religiosos.
Três artigos tratam de temas especificamente educacionais: reconhecimento de títulos acadêmicos, instituições de ensino católicas e ensino religioso nas escolas públicas. Os dois primeiros temas são de fato inócuos, como qualificou todo o texto a diretora do Departamento da Europa do Itamaraty, no dia em que a concordata foi assinada, mas o terceiro tema acarreta conseqüências deletérias para a educação brasileira.
A Igreja Católica é a única instituição que sempre fechou questão em torno do ensino religioso nas escolas públicas. As Igrejas Evangélicas foram tradicionalmente contra a inclusão dessa disciplina nos currículos do sistema público de ensino. As Igrejas Pentecostais, mais recentes, não fecharam questão sobre isso – umas são manifestamente contra, outras se dividem.
Vejamos o que reza o artigo 11 do tal acordo:
A República Federativa do Brasil, em observância ao direito de liberdade religiosa, da diversidade cultural e da pluralidade confessional do País, respeita a importância do ensino religioso em vista da formação integral da pessoa.
Parágrafo 1º [aliás, Parágrafo único] – O ensino religioso, católico e de outras confissões religiosas, de matrícula facultativa, constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, em conformidade com a Constituição e as outras leis vigentes, sem qualquer forma de discriminação.
O conteúdo deste artigo remete a algo que a Igreja Católica já teve e quer de volta. Ela pretende manter uma disciplina no currículo das escolas públicas, contra a qual há um amplo movimento, embora inorgânico (ainda?). Trata-se da disciplina ensino religioso nas escolas públicas, aliás, a única disciplina de currículo escolar mencionada pela Constituição. O simples fato de tal obrigatoriedade constar da Carta Magna já denota a existência de uma força contra a qual esse dispositivo foi inserido – a laicidade, ainda que difusa, prevalecente no âmbito do professorado e da população em geral, religiosa ou não.
Depois das derrotas das posições laicas nas Constituintes de 1934, 1946 e 1988, o ressurgimento da luta pela supressão dessa disciplina nos currículos das escolas públicas é induzida pelos movimentos em prol dos direitos sexuais e reprodutivos, assim como da reação contra as tentativas de submeter a atividade educacional à prática religiosa.
Enquanto a Constituição não muda, vejamos o que a concordata contraria a legislação educacional em vigor.
O artigo 11 da concordata afronta, essencialmente, o artigo 33 do texto reformado da LDB, o qual determina que o conteúdo da disciplina ensino religioso seja estabelecido pelos sistemas de ensino (especificamente pelos respectivos conselhos de educação), depois de ouvidas entidades civis constituídas pelas diversas confissões religiosas. Assim, pode não haver “ensino religioso católico”, nem de confissão específica alguma. Se esse conteúdo for de caráter histórico, sociológico ou antropológico, ou uma mescla das doutrinas religiosas conveniadas, etc., dependerá da composição política de tais entidades civis.
O texto da concordata toma partido numa luta que divide o campo religioso no Brasil, luta na qual o Estado não pode se envolver: a disciplina ensino religioso deve ser confessional ou interconfessional? A mudança da LDB em 1997 tomou partido pela versão interconfessional, mas o Estado do Rio Janeiro aprovou lei, em 2000, que instituiu a versão confessional. A lei é frequentemente atribuída à iniciativa do governador Anthony Garotinho, por ser ele evangélico, mas o projeto foi redigido e apresentado por deputado ligado à arquidiocese católica.
A pressão ou a sedução vaticana terão sido tão fortes a ponto de o Presidente Lula ter autorizado a assinatura de um texto com tamanha ilegalidade? Como pôde o Ministério da Educação, que opinou sobre os termos da concordata, ter consentido com tal formulação? Ou não consentiu, mas perdeu nas disputas palacianas? Ou será que a sedução vaticana foi irresistível até mesmo para o Ministro Haddad?
Em suma: no que diz respeito à disciplina ensino religioso nas escolas públicas, a concordata vaticana arrasta o Estado brasileiro para o interior dos conflitos do campo religioso, o que é flagrantemente inconstitucional.
Contrastando com o obsequioso silêncio da imprensa, algumas manifestações corajosas têm chegado ao Congresso contra a concordata. Organizações católicas, assim como dirigentes presbiterianos e metodistas já se manifestaram contra esse acordo, no mesmo tom dos maçons.
A eles se juntaram seis advogados de Guarulhos (SP), que moveram ação popular contra o Presidente da República e a Confederação dos Bispos (Católicos) do Brasil, para suspender os efeitos da concordata. Subjacente a essas manifestações está o argumento de que o governo brasileiro não pode firmar tratado exclusivo com um Estado que representa uma igreja, já que só a Igreja Católica tem um Estado próprio. Perto de um ano eleitoral, quando os acordos políticos se aceleram, que respostas darão os congressistas? A maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal deu voto favorável à constitucionalidade da Lei da Biossegurança, que o Congresso aprovara, apesar das pressões e das ameaças da burocracia eclesiástica. E diante da concordata, haverá recuo ou consolidação do avanço na laicidade do Estado?
Fica aqui um apelo às entidades democráticas, portanto laicas, para que manifestem sua posição ao Congresso e ajudem a formar uma sólida opinião pela efetiva liberdade de crença, logo contra os privilégios políticos de uma religião, mesmo que seja (ainda?) a da maioria dos brasileiros.
* Luiz Antônio Cunha é Coordenador do Observatório da Laicidade do Estado da UFRJ.
http://www.nepp-dh.ufrj.br/ole>.
Fonte: Educação & Sociedade, Vol. 30, Nº 106 (2009).
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