sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Ciganos lutam para derrubar preconceitos

Por Ligia Martoni

Nos acampamentos ciganos, palavra dos mais velhos e casados têm peso maior na hora das decisões.

Conta a história que, há cerca de quatro mil anos, eles saíram da Índia para nunca mais deixar de transitar entre os diversos países, as diversas culturas, diferentes cidades e lugares. Passaram pela Europa, sofreram na pele a ardência da inquisição e, entre muitas andanças, encontraram também o Brasil.

Eles, os ciganos, hoje habitam tendas ou apartamentos, preservam os ritos e as características culturais como elementos identificadores e continuam tendo a fama de negociantes natos. São, entretanto, um povo que ainda luta pelo mínimo no que se refere a direitos humanos, como ter, por exemplo, um simples registro de nascimento. E imploram: esqueça aquela história de que roubam criancinhas. A única coisa que pretendem tirar de nós é o preconceito.

O modo de vida dos ciganos surpreende por preservar muito, talvez quase tudo, do que sua peculiar cultura tem. Apesar de serem hoje vistos como povos mais sedentários, eles atestam que o nomadismo está dentro deles: na hora que bate a vontade, simplesmente vão embora, seja por motivo de uma festa longínqua ou pela busca da tranqüilidade. Foi assim quando os primeiros deles deixaram a Europa para vir ao Brasil em 1547, antes mesmo dos negros, degredados pelos reis católicos de Portugal e Espanha.

Basicamente, eles se subdividem em dois grupos: os calons e os roms.
A primeira leva de ciganos era composta pelos calons, grupo que predomina até hoje no Nordeste brasileiro, onde aportaram.
Já os roms, comuns no Sul do Brasil, vieram quando boa parte dos imigrantes europeus o fizeram, entre o final do século XIX e início do XX.

"Quando começamos aqui, vivíamos do escambo. Os calons do Nordeste chegaram a manter uma espécie de quilombo por quase 90 anos sobrevivendo dessa forma. Essa prática foi a primeira grande contribuição dos ciganos para o Brasil, afirma o cigano Cláudio Iovanovitch, presidente da Associação de Preservação da Cultura Cigana (Apreci/PR). A segunda, diz, teria sido a criação dos Correios, já que desde os primórdios da colonização os ciganos já trocavam e transportavam correspondências.

De lá para cá, eles testemunharam e participaram de momentos importantes da história do Brasil.

Os tropeiros do Sul, por exemplo, tinham seus utensílios consertados pelos ciganos que habitavam os lugares por onde passavam; na Guerra dos Farrapos, no Rio Grande do Sul, junto com os negros, eles também foram para a frente de batalha. No nosso povo, a globalização é cultural. Seja aqui ou do outro lado do mundo, nós estamos falando a mesma língua e dançando as mesmas músicas. Assim nos identificamos e transmitimos conhecimento, explica Ioanovitch".

Eles costumam dizer que a língua deles é a pátria em que vivem.
Esse idioma mundial, chamado romani, ou romanês, se subdivide em vários dialetos, mas os unifica na tradição de perpetuar a história oralmente - não há escrita para a língua oficial dos ciganos.

Suas tradições, assim como o idioma, são únicas. Há quatro grandes marcas na vida dos ciganos: nascimento, batismo, casamento e morte. Todas envolvem grandes festividades. A mais conhecida delas, o casamento, tem suas características preservadas aos longo dos milênios desse povo. São três dias de festa, sendo que, após as núpcias, a noiva passa a usar vestes vermelhas. "O comprometimento com o parceiro prometido também é preservado, assim como o costume do dote - além, é claro, da tradição de pendurar o lençol com o sangue que prova a virgindade da cigana para que a família ateste a pureza. É uma grande alegria para o pai, mãe e irmãos, diz o cigano Antônio Marques da Cruz, que vive em um dos três acampamentos mantidos em Curitiba".

A importância do casamento também tem a ver com a integração social. São os casados que participam da decisão de para onde o grupo deve ir, complementa o presidente da associação. A palavra que mais pesa, porém, é a dos mais velhos.

Que o diga o cigano Auralim Barreto, o mais velho do acampamento, que resume as intenções de seu povo com uma mensagem de fé: Estamos aqui apoiados por Deus, mas não fazemos mal a ninguém. No dia em que formos embora, agradecemos e outros vêm em nosso lugar.

Desafio é conseguir terreno próprio.

A principal característica dos ciganos, no entanto, é também base do desafio que enfrentam para obtenção dos direitos básicos de cidadania. O nomadismo faz deles pessoas sem um CEP, essencial na hora de obter-se um registro de nascimento, ter direitos de assistência à saúde e educação para os filhos.

Em Curitiba, como presidente da associação, Cláudio já conseguiu algumas conquistas, como intervir junto à Prefeitura para que crianças ciganas fossem matriculadas em escolas. A maior delas, no entanto, ainda não está concretizada: a obtenção definitiva de um terreno como patrimônio cigano. Somos nômades, mas nosso interesse nisso se justifica porque todas as políticas públicas exigem residência fixa. Aqui, sempre que ciganos saírem, lutamos para que os que vierem em seguida tenham direitos, esclarece.
O terreno em questão existe, na região da Vila Sandra, proximidades da Cidade Industrial de Curitiba. Os trâmites para cessão começaram ainda no governo Rafael Greca, em 1996. Depois de vetos e negativas por parte do município, finalmente em 2003 foi cedido em forma de comodata. Mas agora está vencida e estamos aqui como invasores, lamenta o cigano, que continua com a luta para obtenção oficial do terreno, embora sem sucesso nas tentativas de contatar o atual prefeito Beto Richa. É um direito nosso. Daqui só saímos por bala ou pela Justiça, mas esta sabe do que nos foi feito durante este tempo todo. O espaço é batizado como Cláudio Domingues Iovanovitch Junior, em homenagem ao filho de dez anos, morto em 1999. Os médicos nunca souberam explicar as causas. (LM)

Perseguição vem com a educação

Os ciganos têm explicação para o medo que ainda sentem surgir nas pessoas ao se depararem com suas vestes típicas e dentes de ouro. Para eles, o preconceito ainda existe porque vem com a educação. Desde cedo as crianças aprendem que ciganos as roubam. E nos livros de escola também somos colocados como ladrões e vândalos, exemplifica Cláudio Iovanovitch. A perseguição a este povo demonstra ser cultural. Queimados nas fogueiras da inquisição, além de banidos junto aos judeus no genocídio de Hitler, eles passaram a ser vistos como amaldiçoados, justamente pela mística que carregam nas veias.

Para Cláudio, no entanto, sua capacidade de prever o futuro tem a ver com observação e vivência. Quando a cigana lê a mão, na verdade ela te toca e identifica sua energia. E não é nem sim, nem não. A tua vida vai dizer e você nunca mais vai encontrá-la para dizer o que aconteceu, explica. A previsão, nesse sentido, está mais relacionada a verificar o que a natureza tem a dizer, somada à experiência histórica. Sempre olhamos um pouco na frente. Diante de tanta perseguição histórica e mundial, desenvolvemos essa habilidade.

Do mesmo modo são as pragas ciganas, que eles garantem ser poderosas. Nós as difundimos como forma de proteção. Não temos cercas ou guardas para nos defender, diz Cláudio. A filha dele, Tatiane Iovanovitch, prefere simplesmente dizer que há coisas dos ciganos para as quais não se tem explicação. São dons, não tem como explicar racionalmente. Como produtora de cinema, no entanto, ela pretende mostrar à sociedade quem são eles e, assim, desmistificar em forma de arte os mitos preservados ao longo de tantas gerações. O projeto, que inicialmente dará a um filme o nome de Traio romano: uma saga cigana, tem o intuito de mostrá-los como elemento que faz parte da identidade civilizatória do País e revelar seus ideais. Somos pacíficos e prezamos a liberdade. Queremos ser conhecidos e respeitados dessa forma. (LM)

Cultura se perde com mistura de raças

A historiadora curitibana Etiane Caloy, descendente de ciganos, acredita que o fato de a família ter deixado de preservar a cultura não retira dela o sentimento de possuir o sangue cigano.

Quando o tataravô, um cigano húngaro, deixou sua terra natal, a raça passou a se misturar e, nas gerações seguintes, a cultura foi não apenas se perdendo, como deixando propositalmente de ser lembrada. Tudo que minha mãe ouvia de minha avó era que descendíamos de um povo amaldiçoado. Um dia ela insistiu em perguntar qual era essa raça, e minha avó disse que eram ciganos. A razão de tudo isso era medo, justamente pelo estigma com que os ciganos são lembrados, acredita Etiane.

Quando tomaram ciência disso, a historiadora e sua mãe começaram a perceber que diversos elementos as identificavam com o povo cigano - desde o gosto musical até a atração pelas vestes características. É um sentimento de pertença. A gente se sente cigana no jeito de pensar, sentir e por não termos nenhuma necessidade de fixação. Fomos sedentarizadas e deixamos a cultura por força da circunstância. Ironicamente, ela estuda a História relacionada ao sentimento, ou seja, sob um ponto de vista que ultrapassa o simples relato de fatos e datas para entender como se deram os episódios dentro das expectativas de amor, dor, vingança ou ódio que guiaram os diversos sistemas políticos. Historicamente, as pessoas são movidas por esse sentimento. As paixões nos movem muito mais em direção a certas coisas do que imaginamos conscientemente, explica.

Dentro dessa linha de pesquisa - que alia Antropologia e Psicologia -, a professora da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) acredita que seja possível obter subsídios para se entender porque os ciganos ainda são vistos pela sociedade com tanto preconceito. Apesar de estarem descritos entre as minorias do povo brasileiro desde a Constituição de 1988, eles ainda não conseguiram alcançar posicionamento semelhante ao que negros e índios aos poucos vêm conquistando.

Não são contemplados no ensino como elementos que contribuem com a cultura e, diferente de índios e negros, que vêm sendo abordados nos livros didáticos de forma mais humanizada, os ciganos ainda lutam ao menos para serem vistos como cidadãos de direitos, explica.

Ela avalia que, neste campo dos sentimentos, a educação dá conta de traduzir os negros dentro do remorso que a história sente por tê-los escravizado e, os índios, como seres incapazes de cometer o mal após terem suas terras invadidas. Até os judeus têm capital intelectual e financeiro para traduzir o genocídio de Hitler como holocausto, que significa sacrifício aos deuses, e espalhar o título pelo mundo, comenta.

Os ciganos, no entanto, ainda parecem estar longe de tais caracterizações. Sua luta é árdua por mudanças na lei, nas perspectivas e, principalmente, no sentimento que as pessoas nutrem por eles sem saberem ao menos o porquê. (LM)

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